Hoje Verdade, Amanhã Mentira. Em Quem Devo Acreditar?
“Já não sei em que acreditar” é provavelmente a frase que oiço mais quando estou a debater temas relacionados com a nutrição. Ah, e como eu vos entendo incrédulos humanos, que sois todos os dias bombardeados por informação falsa (fake news), tendenciosa, sem fundamento científico ou fruto dos devaneios imaginários de quem precisa escrever meia dúzia de palavras para um qualquer clickbait.
As fontes de informação sobre nutrição, saúde e bem-estar são mais que muitas. Ter muito por onde escolher seria algo de positivo, não fosse o caso de muitas destas fontes se contradizerem frequentemente. Quem perde com isto, ficando cada vez mais confuso, é o cidadão comum, sendo impossível distinguir entre o que são evidências científicas e ficção de entretenimento.
O Que Se Diz Por Aí
Debrucemo-nos um pouco nas inverdades mais enraizadas na sociedade dos tempos modernos (alerta: alguns destes tópicos não reúnem ainda o consenso da comunidade científica).
As gorduras fazem mal à saúde
Talvez nenhum assunto seja hoje em dia mais controverso no mundo da nutrição do que as gorduras.
Nos anos 50, um cientista chamado Ancel Keys começou a afirmar que a gordura saturada causava doenças cardíacas. A sua investigação parecia bastante convincente na altura, e a sua teoria lançou o início de uma longa era temente à gordura. Acontece que a ciência não suporta de todo as alegações dos benefícios das dietas com baixo teor de gordura.
Num estudo publicado em 2017 na conceituada revista britânica The Lancet [1], investigadores de várias instituições analisaram mais de 135.000 indivíduos com idades compreendidas entre os 35 e os 70 anos, provenientes de dezoito países. Os investigadores descobriram que aqueles com maior ingestão de gordura alimentar (35% das calorias diárias) tinham menos 23% de probabilidade de morrer do que aqueles com menor ingestão de gordura (10% das calorias diárias). Mas as alegações infundadas não se ficam por aqui, vejamos outras:
Dietas baixas em gordura protegem contra doenças do coração, obesidade e diabetes: Não provado
As gorduras saturadas provocam doenças do coração: Falso [2]
Níveis elevados de colesterol no sangue provocam doenças do coração: Falso [3]
Gorduras saturadas aumentam o colesterol “mau”: Falso [4]
O colesterol ingerido aumenta o colesterol no sangue: Falso [5]
O pequeno-almoço é a refeição mais importante do dia
O principal argumento por detrás da teoria "o pequeno-almoço é o mais importante do dia" baseia-se na noção de que, como a sensibilidade à insulina é maior de manhã, devemos ingerir uma refeição com alto teor de carboidratos para aproveitar esta janela temporal sem o risco de ganhar peso. Mas há pelo menos um problema com esta teoria: a sensibilidade à insulina não é maior à hora do dia que o Sol nasce; a sensibilidade à insulina é maior porque os níveis de glicogénio estão em níveis mínimos após oito horas de jejum (período de sono). Na verdade, prolongar esse período de jejum para além das oito horas (tipicamente saltando o pequeno-almoço) aumenta ainda mais a sensibilidade insulínica. [6, 7]
O sal faz mal à saúde
É um tópico que deve ser tratado “com um grão de sal”, que é como quem diz, aconselha-se algum discernimento crítico, especialmente em casos de hipertensão arterial. O que se pretende aqui desmistificar é que, genericamente, o sal não faz mal à saúde, existindo até uma correlação entre o maior consumo de sódio e menor mortalidade, conforme de ilustra no gráfico abaixo [8].
Claro que, como em tudo, moderação é a palavra de ordem e, infelizmente, o tipo de dieta ocidental rica em “junk food” é uma autêntica bomba em termos de quantidade de sal, pois a industria alimentar sabe que sabores mais fortes são sinónimo de vendas maiores. Resumindo, alguém que siga uma alimentação saudável poderá (e deverá) continuar a temperar a comida com um bom sal marinho; quem consome muita comida processada deverá moderar/reduzir a ingestão de sal.
O leite e seus derivados são óptimos para a saúde
Num artigo recente publicado no New England Journal of Medicine [9] foram analisados 100 estudos sobre o leite e as conclusões foram contrárias à sabedoria popular. Não há necessidade humana de beber o leite de outros animais. Todos os nutrientes do leite podem ser obtidos nas quantidades necessárias a partir de outras fontes alimentares. Para o cálcio, as fontes alternativas (e melhores!) incluem couves, brócolos, nozes, sementes, feijões ou sardinhas. O leite e outros produtos lácteos podem trazer benefícios para a saúde das pessoas com má qualidade alimentar, especialmente no caso de crianças nesta situação. Para as pessoas que seguem uma dieta saudável, a ingestão elevada de lacticínios pode até causar danos. Além disso, não há provas de benefícios para a saúde em reduzir a gordura do leite.
Boas e Más Fontes de Informação
Este artigo não pretende ser a resposta definitiva sobre o tema aqui debatido. Até porque o site onde se encontra publicado poderá ser considerado por alguns uma fonte menos fidedigna. Ainda assim, pensemos por instantes o que nos faz acreditar mais ou menos em determinada informação. Será um site de venda de produtos alimentares uma boa fonte sobre nutrição? Será um site de entretenimento, que vive à custa de publicidade (e de cliques) uma fonte de informação credível? E uma revista de beleza e moda? Pois… depende. Alguns artigos até podem ter validade científica, mas fica a dúvida se outros interesses (comerciais, políticos) se sobrepõem. Tentemos então qualificar as diversas fontes sem ferir susceptibilidades:
Óptimos (rigorosos, progressistas e às vezes experimentalistas)
Repositórios de informação científica como o Pubmed.
Publicações científicas como o Journal of the American Medical Association, o New England Journal of Medicine, revista Nature ou o British Medical Journal.
Universidades conceituadas com departamentos de investigação nas áreas da saúde e nutrição.
Bons (conservadores e seguros)
Órgãos governamentais ligados à área da saúde.
Associações Profissionais na área da saúde e nutrição.
Agências internacionais nas áreas da saúde e nutrição.
Menos Bons (de qualidade variável)
Órgãos de Comunicação Social em geral. Para cumprir prazos, os jornalistas confiam frequentemente em comunicados de imprensa, que muitas vezes não conseguem resumir com precisão os resultados dos estudos.
Sites privados nas áreas da saúde, bem-estar e nutrição.
Maus (com outros interesses)
Sites/revistas generalistas de entretenimento.
Redes sociais. Infelizmente são as principais geradoras de fake news.
Obviamente que em cada uma destas categorias podem existir excepções. Por exemplo um determinado órgão de comunicação social tanto pode publicar uma peça jornalística de qualidade exemplar, como outra sem qualquer fundamento, dependendo de quem é a autoria. Um site privado, apesar de ter interesses comerciais, pode reger-se por valores de isenção e rigor que estão ao nível das melhores fontes de informação científica. Como identificar então a validade e qualidade? É sobre isso que vamos agora falar.
Então, mas se existe um estudo científico deve ser verdade, certo?
Se ainda não estão mais confusos nesta altura, deixem-me complicar as coisas mais um bocadinho: a resposta é não, nem todos os estudos científicos têm a mesma validade.
Debrucemo-nos um pouco nos vários tipos de estudos científicos, mais concretamente na pirâmide de evidência científica (figura abaixo). Quanto mais acima na pirâmide, mais “válido” será o estudo. Por exemplo um estudo observacional de padrões alimentares, baseado em relatos das pessoas tem uma margem de erro muito grande, pois constatou-se que nós somos péssimos a lembrarmo-nos do que comemos. E, pior ainda, temos tendência a relatar quantidades inferiores às reais na comida, e a inflacionar a quantidade de exercício físico realizado. Por outro lado, um estudo controlado, onde um grupo aleatório de pessoas recebe uma quantidade bem definida de um determinado alimento, suplemento ou fármaco terá menos margem para erros. E se existir um outro grupo, chamado de controlo, que recebe um placebo, então os resultados obtidos por comparação entre os 2 grupos serão ainda mais fortes.
Já agora, este tipo de estudo, chamado de Estudo Controlado Aleatorizado (ECA) ou, em Inglês, Randomized Control Trial (RCT), é considerado o “gold standard” na investigação científica.
Depois de realizado o estudo há que submetê-lo à aprovação da restante comunidade científica, um processo denominado revisão dos pares. O site Pubmed é o repositório por excelência dos artigos revistos. Os sites bioRxiv.org e medRxiv.org publicam trabalhos antes da revisão por pares. Publicações como a revista Nature, Cell, Science, The Journal of Virology ou o New England Journal of Medicine continuam a ser o padrão de rigor científico.
No final deste processo, podemos assumir se determinado estudo é mais ou menos credível baseado nalguns factores:
Objecções ou citações pelos pares: a sabedoria colectiva valida ou rejeita o estudo.
Conflitos de interesse: os estudos patrocinados estão normalmente em sintonia com os objectivos e interesses de quem os financia [10].
Repetibilidade do estudo: pode ser reproduzido, obtendo-se os mesmos resultados?
Abrangência: realizado em animais ou humanos? O grupo estudado era representativo da comunidade onde os resultados se aplicam?
Há Esperança?
Claro que sim! No caso específico da Nutrição é uma ciência que pode ser considerada muito recente quando comparada com outras, como a Física ou Química. E o método científico é, por natureza, evolutivo, isto é, não há dogmas nem verdades absolutas: determinada hipótese é aceite como válida até surgir uma nova explicação, mais simples e eventualmente mais abrangente.
Vivemos na era da informação ubíqua e da democracia das opiniões, potenciadas por uma multitude de canais de disseminação, de que são um bom exemplo as redes sociais. Tal como no fenómeno fake news, pede-se a todas as pessoas um julgamento crítico e a identificação de algumas pistas mais ou menos óbvias se estamos perante uma informação de qualidade, como por exemplo:
A fonte é credível?
A solução apresentada é milagrosas ou boa demais para ser verdade?
São apresentadas evidências científicas robustas?
Os argumentos são demasiado radicais ou deixam espaço para dúvidas?
No final, se não estiverem convencidos, sigam o vosso instinto e duvidem de tudo… até do que acabaram de ler aqui.
Referências
Dehghan M, Mente A, Zhang X, et al. Associations of fats and carbohydrate intake with cardiovascular disease and mortality in 18 countries from five continents (PURE): a prospective cohort study. Lancet. 2017;390(10107):2050-2062. doi:10.1016/S0140-6736(17)32252-3
Siri-Tarino PW, Sun Q, Hu FB, Krauss RM. Meta-analysis of prospective cohort studies evaluating the association of saturated fat with cardiovascular disease. Am J Clin Nutr. 2010;91(3):535-546. doi:10.3945/ajcn.2009.27725
Sachdeva A, Cannon CP, Deedwania PC, et al. Lipid levels in patients hospitalized with coronary artery disease: an analysis of 136,905 hospitalizations in Get With The Guidelines. Am Heart J. 2009;157(1):111-117.e2. doi:10.1016/j.ahj.2008.08.010
Siri-Tarino PW, Sun Q, Hu FB, Krauss RM. Saturated fat, carbohydrate, and cardiovascular disease. Am J Clin Nutr. 2010;91(3):502-509. doi:10.3945/ajcn.2008.26285
Berger S, Raman G, Vishwanathan R, Jacques PF, Johnson EJ. Dietary cholesterol and cardiovascular disease: a systematic review and meta-analysis. Am J Clin Nutr. 2015;102(2):276-294. doi:10.3945/ajcn.114.100305
LeCheminant GM, LeCheminant JD, Tucker LA, Bailey BW. A randomized controlled trial to study the effects of breakfast on energy intake, physical activity, and body fat in women who are nonhabitual breakfast eaters. Appetite. 2017;112:44-51. doi:10.1016/j.appet.2016.12.041
Harvie MN, Pegington M, Mattson MP, et al. The effects of intermittent or continuous energy restriction on weight loss and metabolic disease risk markers: a randomized trial in young overweight women. Int J Obes (Lond). 2011;35(5):714-727. doi:10.1038/ijo.2010.171
Alderman MH, Cohen H, Madhavan S. Dietary sodium intake and mortality: the National Health and Nutrition Examination Survey (NHANES I). Lancet. 1998;351(9105):781-785. doi:10.1016/S0140-6736(97)09092-2
Willett WC, Ludwig DS. Milk and Health. N Engl J Med. 2020;382(7):644-654. doi:10.1056/NEJMra1903547
Warner TD, Gluck JP. What do we really know about conflicts of interest in biomedical research?. Psychopharmacology (Berl). 2003;171(1):36-46. doi:10.1007/s00213-003-1657-x